segunda-feira, 31 de maio de 2010

MIGUEL ORTIZ. 73 ANOS DE JANELA.

Miguel Ortiz de Camargo. Miguel Ortiz. Simplesmente Ortiz. Ou Miguel.
Meu tio Miguélzão. Eu sou o Miguelzinho.
O tio mais novo que eu tenho.
Tio ou irmão? As duas coisas.
Com ele tive minha primeira lição de mulher. Confesso que me assustei um pouco. Não imaginava que nem tudo eram flores ou perfumes.
Com ele aprendí que um viado de quatro nunca fica de pé, mas um viado de pé sempre fica de quatro.
Com ele varei cerca de arame farpado para colher laranja no quintal do vizinho.
Com ele fui coroinha e só deixei de ser quando certa manhã ouvi seu grito lá no fundo da casa paroquial: Corre, corre, Miguelzinho, que o padre qué comê nóis. E até hoje a gente corre.
Com ele nadei pelado pela primeira vez e arrisquei uns puns na piscina do Abdalla Jabur para ver se subia bolinha. Não subiu nenhuma.
Com ele toquei na banda, joguei bola, pião, bolinha de gude, fui toureiro de bode e cabra vadia, até que um dia a jardineira do Bento França me levou embora e me perdí da infância.
Mas, engraçado, a infância sempre volta para quem não é morto vivo.
E a sombra agora a meu lado, aqui na Avenida Paulista, em São Paulo, tenho certeza que é a dele.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

DIÁRIO DA COPA (da África do Sul para São Miguel Arcanjo)






ROBINHO ESTRESSADO

"Não sei se é a solidão, professor Dunga, eu não sei. Sabe, ficar tanto tempo num lugar só, as mesmas pessoas, o mesmo papo, as mesmas brincadeiras de rodinha, acho que estou ficando doido. Sabe professor? Só vejo zebra na minha frente, a mesma zebra sempre. O que eu faço, professor Dunga? Me ajude. Não suporto mais ver zebra. Hen? Meu nome? Claro que é Robinho. Onde estou? Aqui, professor. Aqui onde? Africa do Sul, professor. Professor: meu problema é ver zebra, só isso, o resto está normal. Hen? Mentalizar que eu posso apagar as listras da zebra? A força do pensamento? Isso é bom? Já estou tentando, professor, estou tentando. Ai, nossa, que legal, as listras da zebra estão sumindo, sumindo, sumiram. Todas as listras sumiram, professor, graças a Deus. E agora? Agora só estou vendo um burro na minha frente."

DIÁRIO DA COPA (Da África do Sul para São Miguel Arcanjo)


DUNGA PREOCUPADO COM A MOLEZA GERAL
"Desculpem, mas não dá, assim não dá.
Como técnico da seleção preciso acabar com essa moleza.
Não posso admitir que jogador meu cochile enquanto se exercita.
Daí, minha decisão, que é irrevogável. E se é radical, o problema é meu, os jornalistas que vão pentear gorilas.
Amanhã, voce, Paixão, e você, Fábio, coloquem os jogadores em formação no meio do campo. Só isso, mais nada. Mas, estejam com suas pranchetas para anotar impulsão, velocidade, jogo de cintura, reflexos condicionados, espírito de cooperação.
Nosso querido presidente Ricardo Teixeira teve uma idéia genial para acabar com a pasmaceira nos treinos da seleção.
Ele alugou um leão, que será solto pelo domador no meio de campo amanhã.
O treino começa quando o primeiro jogador perceber o leão."








segunda-feira, 17 de maio de 2010

FALTA NESTA COPA O PICOLÉ DO SALOMÃO


Seu nome era ponto de referência em São Miguel Arcanjo: o bar do Salomão.
Ele trouxe para a cidade a primeira máquina de fazer sorvete e picolé.
O barulho do motor, os giros da espátula a misturar massas moles e coloridas, o bamboleio da pesada estrutura do equipamento, não havia menino que não se deslumbrasse.
Pesado de corpo e leve de alma, Salomão acrescentava ao sabor dos sorvetes e picolés o encanto de uma boa prosa.
Ele sempre dizia que três são as perdições do Homem: língua nervosa, estômago preguiçoso e a mulher do próximo.
Sua grande paixão: o futebol do zaqueiro Domingos da Guia, pai de Ademir da Guia.
Falava que foi o primeiro zagueiro a colocar a bola rente ao chão.
Ele contava uma velha história do Rei Salomão --- e brincava de dizer que era seu primo.
Numa tarde de muito calor, homens e mulheres foram enviados ao campo para apanhar melancias para o Rei Salomão. Mas, a o calor era tanto --- e a sede também --- que todos se esqueceram do Rei. Enfiaram suas cabeças casca a dentro e se lambuzaram na sua gula.
Então, o Rei Salomão condenou todos à mediocridade eterna. Viraram cabeças de melancia. Três milênios depois, elas continuam entre nós, ocas, apenas fazem eco. Algumas delas comandam a seleção brasileira.

domingo, 2 de maio de 2010

DOCES E ANTIGAS MÃES DE SÃO MIGUEL


Elas espalhavam todas as manhãs o cheirinho de tempeiro de feijão, bem na hora em que os sinos do relógio da Igreja Matriz batiam 10 vezes.
O relógio às vezes atrasava. A hora do tempero nunca.
Então, os maridos no trabalho e os filhos na escola sentiam de longe a fome bater. Mas, era fome de amor.
O cheirinho de tempero de feijão era o amor espalhado pelo ar. E dava vontade de correr logo atrás daquele amor que as mães de São Miguel serviam em pratos limpos sobre toalhas bordadas.
Elas ainda ofertavam, além de um amor bem temperado, a esperança. Passar de ano, tirar diploma. Plantar, colher, vender e pagar as contas. Tudo era possível depois do primeiro bocado. E nem era preciso mais que o torresmo e a couve do quintal, refogada, para disfarçar o arroz com feijão.
Na mesa, homens e crianças sentiam que havia uma Senhora de seus destinos, a Senhora mãe de fogão a lenha e café no coador.
Apagaram o fogo. As doces e antigas mães de São Miguel foram embora.
As novas, de laptop e celular, não sabem mais temperar feijão.
E assim o mundo vai acabando.