sexta-feira, 23 de outubro de 2009

SEMANA DA HUMILDADE. DE 25 A 1 DE NOVEMBRO. ANO 1. NÚMERO 35

UM HOMEM SEM MEDO
Milton e Maria. Dois versos da vida. Um verso de coragem, outro de alegria, combinados na velha rima de que no largo da Matriz sempre se forma um casal feliz.

1. Hoje que o mundo é feito de medo, feliz daquele que conheceu três homens sem medo nenhum.
Milton era um deles.
Milton Sewaybricker.
Ele, José Monteiro Terra (Trincheira) e Tonico Ortiz formavam um trio que exercia em São Miguel Arcanjo o pleno direito de ser dono de si.
Ai de quem levantasse um dedo mandão ou autoritário.
Ai de quem pisasse em pé de pobre.
Ai de quem se erguesse contra o sagrado direito de ir e vir.
E ai de quem imaginasse que aquele corpo magro do Milton significava fraqueza. Seria surpreendido pela extraordinária força de um dos mais competentes mecânicos de São Miguel Arcanjo e um dos mais generosos: nele se penduravam os donos de caminhão com problemas na vida e na biela.

2. Ah, um amigo como o Milton, onde encontrar nestes tempos? Amigo sem medo da vida: para o que der e vier. E sem medo da morte: seja o que Deus quiser. Milton, um dos meus heróis. E que se casou com minha heroina: Maria.

Milton, um homem sem medo, portanto, um homem.



TAPICHI LIDANDO COM A ANGÚSTIA

Esta é a mais recente entrevista com Tapichi, o eterno mendigo de São Miguel Arcanjo (às vezes, ele aparece). Ele parecia tomado pelo espírito de Hubert Benoit (pesquisem, que vocês vão conhecer um grande homem).


1.


--- Como a gente pode se livrar da angústia, Tapichi?


--- Só existe uma saída: a humildade.

--- Apenas humildade, Tapichi?
--- Você acha pouco??? A humildade é a mais rara virtude humana. Nas sombras da humildade sempre existe o orgulho de ser humilde. Até entre os santos existiram os que orgulhosamente se achavam mais humildes que os outros.
--- São Francisco de Assis?
--- Ah, não, eu não vou fazer fofoca.

--- Mas, de que humildade você fala, Tapichi?
--- Eu falo da humildade da humilhação!
--- Dá para explicar melhor?

---Não confunda humildade com roupa velha, sapatos furados, cara de bocó e uma boca aberta que baba amém para tudo.

--- Ai, ai, que esta conversa vai longe.
--- Você tem paciência para ficar ouvindo sem babar?
--- Claro que tenho, Tapichi. Paciência é o que não me falta: ouví muito sermão de padre quando era criança.
--- Bem, já que você está entre aqueles que não mais carregam sacos pela vida (apenas coçam), vou em frente.



--- Fique à vontade, Tapichi.


--- É o seguinte: você sabe como é que as pessoas enchem o próprio saco e ficam de saco cheio?


--- Não, Tapichi.

--- Elas vivem catando pensamentos bobos por aí.
--- O que é um pensamento bobo?
--- O pensamento sobre o que os outros pensam da gente. O pensamento de que um dia a casa pode cair. O pensamento de que a galinha do vizinho é mais gostosa ou o pinto do vizinho é mais gordo. O pensamento de que alguém viu o que foi feito escondido. O pensamento de que a Terra gira apenas em torno da gente e que o Sol só bate no nosso quintal.
--- Meu Deus, Tapichi, eu vivo pensando essas coisas.
--- É assim que a gente toca a vida girando no mesmo lugar, igual vira-lata com coceira no rabo.
--- Mas fazer o que, Tapichi?
--- É preciso sair desse círculo vicioso.

--- O que você entende por círculo vicioso, Tapichi?
--- Círculo vicioso é um ânus que sempre se senta no mesmo lugar.
--- Ai, ai, ai...
--- Desculpe a grosseria, mas não achei comparação melhor. Só fica no mesmo lugar quem tem medo de avançar. Afinal, ninguém sabe o que vem pela frente. É mais seguro ficar no lugar e disfarçar, com humildade fingida, o orgulho de ser dono do próprio mundo. Mas, um dia --- sempre haverá um dia --- em que a falsa humildade e o orgulho disfarçado vão ser humilhados escandalosamente pelo que nunca esteve escrito e nunca estará.





2.

--- Todo mundo se acha dono do mundo, Tapichi.

--- Eu sei. Todo mundo é bocó. Bocó da vida é aquele que se mete a dono do mundo e se separa de si para mandar em si mesmo e se separa dos outros com medo de perder o poder de si mesmo e se separa de Deus porque se julga o próprio deus do seu destino.

--- Ai, ai, ai...

--- O homem não passa de um asno pretensioso, mas as pernas bambeiam e ele cai de quatro quando lá do alto e bem de longe vem o sinal de sua insignificância e impotência em querer ficar fora do mundo para manejar o mundo.

--- O homem está num beco sem saída, Tapichi?

--- Ou ele aceita e reconhece sua igualdade com tudo --- com o que está acima e o que está abaixo ---ou vira um pobre diabo que chega à velhice brigando com mosquito, não importa se rei ou mendigo.



3.

--- Diga mais, Tapichi.

--- Ai de quem se julga no lado de cá o primeiro e único diante do Universo no lado de lá. Para quem vive nessa pretensão e separação, buscar Deus ou a riqueza é a mesma ambição de querer ser melhor que os outros. Por que se outro chegar na sua frente diante de Deus, ele vai sentir inveja. E se a busca for por dinheiro, ele ainda vai brigar com Deus: Por que ele e não eu?

--- O que fazer, Tapichi?

--- Nessa pretensão egoísta de cada um de nós de ir para o alto, a salvação, por incrível que pareça, é a queda. E que seja a queda mais humilhante, de invejar pedaço de pão velho na boca de vira-lata. Nessa extrema humilhação, o homem sente que nada neste mundo é mais, nem menos, e o esterco do fundo do quintal tem diante de Deus a mesma importância da estrela mais brilhante. Então, nesse abismo da humilhação o homem vai sentir que ele está em Deus e Deus está nele, como donos do mundo.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

SEMANA DO JORNAL NACIONAL. DE 15 A 22 DE OUTUBRO. ANO 1. NÚMERO 34


Houve um tempo, em São Miguel Arcanjo, em que a gente sabia de tudo sentado ali na praça, em frente da Igreja.

Sempre chegava alguém com novidade:

--- Sabe quem já está no bico do corvo?

A gente ficava sabendo e espalhava.

--- Sabe quem faz aniversário hoje?

E um abraço era reservado para depois.

--- Adivinhe quem vai se casar?

A gente ficava esperando o convite.

--- Sabe quem anda declamando uns versos bonitos por aí?

Tomara que ele não apareça logo agora para declamar, a gente torcia.

--- Sabe quem lida melhor com uma picanha nesta cidade?

A gente babava.

--- Sabe onde vai rolar o maior bailão?

Todo mundo se animava.

--- Sabe quantos cães abandonados existem por aqui?

Não valia contar os da escadaria da Igreja.

--- Sabe quem anda pintando umas telas de tirar o chapéu?

A gente ia ver.

--- Sabe quem já é doutor?

Dava muito orgulho saber.

Notícias, notícias, notícias.

Para quem vive longe, quanto mais notícias da terra a gente tiver, mais perto a gente fica.

Mandem.