quarta-feira, 23 de setembro de 2009

SEMANA DO MEU SUPER-HERÓI. 29 DE SETEMBRO. ANO 1. NÚMERO 33


1.
Miguel, meu super-herói Miguel.
Me perdoe a intimidade. Já me disseram que esse não é modo de se falar com um Arcanjo.
Mas, eu não sei muito bem o que é um Arcanjo.
Nos tempos de coroinha, falavam que Arcanjo é posição lás das alturas, bem pertinho de Deus. Só de pensar, dá arrepio.
Meu super-herói Miguel: não me leve a mal nem pense que é desrespeito um tratamento assim, sem aquela cerimônia que a Igreja exige. Você é meu super-herói e pronto. Desculpe, mais uma vez, essa minha intimidade. Mas, desde os sete anos de idade nem o Super-Homem, nem Tarzan, nem o Homem Aranha, nem o Capitão Marvel, nem o Capitão América me fascinavam tanto quanto a sua imponência lá no altar. Você superava todos como o meu super-herói.
Muitas vezes, eu quis que você descesse do andor ou do altar e me ensinasse a voar. Ah, se eu voasse, seria melhor goleiro que o Dito Torto, assim chamado por causa do pescoço torto e duro, que envesgava sua cabeça para um lado só. Ele ficou na história do Esporte Clube São Miguel, porque fazia milagres embaixo do gol. Também pensei, meu super-herói Miguel, em pedir sua espada emprestada para defender minha cidade se houvesse uma guerra com Pilar do Sul. A balança eu queria para pesar batata para minha avó no armazém do Nestor Fogaça. Eu tinha certeza de que haveria o milagre de dez batatas pesarem apenas cinco. Outro sonho meu era nos dias de procissão desfilar ao seu lado no andor e acenar para a Carmem Fogaça, a garota que eu amava de longe na hora do recreio do Grupo Escolar.
Ah, meu super-herói Miguel, confesso que estou com saudades.
Todo dia 29 de Setembro é assim: eu fico um pouco triste pelo tempo que passa e leva as crianças embora.
2.
Meu super-herói Miguel.
Hoje, dia 29 de Setembro, bem no seu dia, Renato Cauchiolli voou para o mundo que fica além de qualquer ilusão.
Renato do Trombone.
Claro que você se lembra dele, meu super-herói Miguel. Todo dia 29 de setembro ele chegava até seu altar, como um dos mais fiéis devotos.
Renato Cauchiolli. Meu mestre.
Ele, meu mestre, você meu super-herói, realmente eu fui um menino de muita sorte.
Você, meu super-herói Miguel, era a luz que embalava meus sonhos assim que cheguei menino em São Paulo. Renato era o som. Nós dois viemos aí debaixo do seu altar. Ele chegou na frente e me ensinou os caminhos de São Paulo com muita paciência e ternura. Peço desculpas se me desviei um pouco do rumo certo. Mas, sou muito grato pela fé que me passou, a fé em você, meu super-herói Miguel, a quem ele sempre agradecia por ser considerado um dos melhores músicos do Brasil, com um toque firme e suave, que se destacava nas apresentações de grandes orquestras da Rádio Nacional ou Rádio Tupi ou com Osmar Milani e Enrico Simonetti na TV. Também participou das orquestras de Pocho e Erlon Chaves . Gravou o LP "Trombone Carinhoso". Atuou na Orquestra Sinfônica de São Paulo, na Big Band de Nelson Aires, na TV Globo, TVS, na Orquestra do Sargentelli, que realizou longa excursão à Europa, acompanhou Roberto Carlos, no show "Emoções". Enfim, um talento musical exercido e reconhecido.
Renato do Trombone voou de nós neste 29 de setembro.
E eu tenho certeza, meu super-herói Miguel, que você emprestou suas asas para ele voar.
(Faleceu em 29 de setembro de 2.009, aos 88 anos, Renato Cauchiolli, um dos mais consagrados músicos do Brasil. Nascido em São Miguel Arcanjo, teve as primeiras lições de bombardino e teoria com Joaquim Ortiz de Camargo, o Joaquim Maestro, que sempre foi lembrado em suas entrevistas. O sepultamento: dia 30 de setembro, no Cemitério do Araçá).





domingo, 6 de setembro de 2009

CEM ANOS DE SOLIDÃO. ANO 1. NÚMERO 32

De São Miguel Arcanjo a Santa Cruz dos Matos, o peregrino percorre 100 anos de solidão. E chega a seu destino.

No fim de uma rua estreita, feita de pó, ele avista uma pequena capela. Na frente da capela, um cachorro magro, sem nome e sem dono. Portanto, um cachorro livre, que não precisa viver com o rabo entre as pernas.

Num lado da rua, pés floridos de hibiscos escondem a cerca de arame farpado.

Do outro lado da rua, capim que ninguém vai cortar, porque todos dormem e sonham que um dia haverá de passar por ali uma cabra vadia e com fome. Ou um cavalo velho e manco.

O peregrino sente que nos olhos o pó do deserto dói menos que na alma. Na alma, o pó do deserto vira solidão.

É meio-dia e não há vento nem sinal de chuva.

Tomara que nenhum galo cante. Canto de galo, ao meio-dia, é pra gente perdida no mundo.

Seria melhor ouvir outro sinal de vida. Uma voz de mulher a cantar. Algazarra de criança. Um bem-te-vi. Uma gargalhada gostosa.

Mas, o silêncio é o senhor. Soberano ao meio-dia em cem anos de solidão.

Então, a vida renasce num cheiro gostoso que vem pelo ar. O peregrino segue para o lado de onde vem o vento. Vai com fé, que a fé não costuma falhar. Depois de andar e andar, encontra uma mesa, coberta com toalha florida, perfume de manjericão, nenhuma mosca, e arrumados, muito bem arrumados, pratos de paçoca de carne, paçoca de amendoim e bolinho de frango.

O peregrino dá o primeiro bocado, o segundo, o terceiro. E no quarto, acabam 100 anos de solidão.

Isso não é felicidade?


(foto enviada por Orlando Leme Pinheiro)